"é verdade, morro de saudade"
No outro dia de manhãzinha estava a trabalhar e ouvi a canção "Melodia da Saudade" do Fernando Daniel a passar na rádio de um qualquer carro. Depois percebi que a canção não era essa, aliás, nada tinha a ver com essa... Não sei o que aconteceu comigo naquele momento.
Acho que toda a gente conhece a canção em questão, e toda a gente se lembra de alguém quando a escuta. Eu lembro-me dos meus avós. É com essa e com a "Memories" dos Maroon 5. São duas canções que evito ao máximo ouvir, bem como a "Heaven" do Bryan Adams, se bem que esta última por outros motivos.
Às vezes gosto de imaginar como teria sido a minha vida se os avós não tivessem morrido nem, obviamente antes disso, ficado gravemente doentes, presos à vida por um suspiro, o avô por uma máquina - já agora, por onde anda a alma de alguém cujo corpo só funciona porque um aparelho assim o obriga?
Não perdi os meus avós, que foram os meus pais, no dia em que eles morreram. Perdi-os anos antes, quando ficaram os dois acamados como se já não fossem duas pessoas, duas vidas. Para mim ainda eram os avós. Eu era pequena demais para entender que para eles próprios provavelmente a identidade já se havia perdido. E às vezes o cansaço é tanto e a dor é tão grande que precisamos de parar de ser egoístas (ou pelo contrário, de ser muito egoístas) e desatar o nó.
Não chorei quando os avós faleceram. Reprimi tanto e durante tanto tempo as minhas emoções, que hoje choro por coisas simples, como se a torneira depois de aberta nunca tivesse realmente fechado. Pinga muito por aqui.
O avô foi descansar primeiro. A máquina foi desligada. Uma sala branca, local de trabalho de tanta gente apressada que tantas vezes não vê, não sabe, não sente gente como gente. A avó descansou depois, em casa, junto a nós. Um suspiro e após isso... Nada.
Nesse fim de dia em que a avó faleceu, eu ainda criança fui levada às pressas para casa dos pais da tia, que não me eram nem são família. Um casal que me acolheu o corpo, mas não os sentimentos. Fizeram do sofá da sala uma cama para mim, com dois lençóis e uma almofada. Desejaram bom descanso e fecharam a porta, deixando-me sozinha completamente às escuras, somente com o meu telemóvel, o meu mp3 e uns fones de ouvido. Não se deseja bom descanso a quem acaba de perder tudo. Não se deixa às escuras uma criança que se sente desamparada, órfã e assustada. E, novamente, reprimi as emoções. Não queria ser um estorvo. Respondi à mensagem preocupada da mãe, liguei o mp3 e ouvi música até por fim adormecer. Nessa noite tudo o que eu queria era alguém que me emprestasse o colo e me envolvesse com os braços como quem garante que eu não estou sozinha. Não havia. Não houve. Eu estava.
Não lhes guardo rancor. Nem aos pais da tia, nem aos meus avós. Mas durante muito tempo achei que os avós me tinham abandonado. E durante muito tempo quis ir para junto deles - haveria algo, alguém, por quem ficar? Caminhei incontáveis quilómetros descalça sobre achas de fogueira e vidros afiados. Foi muito difícil chegar até aqui. E para quê? A felicidade, embora a tenha como estado de espírito, não é constante. Ela vem e vai, e vem e vai. Nesta minha vida coberta de "açúcar ácido", tenho a ligeira sensação de que nada corre como o expectável. Como se eu fosse constantemente submetida a provas de fogo. E uma pessoa cansa-se, não é verdade? Uma pessoa cansa-se da vida do circo, de ser palhaça e de fazer acrobacias em trapézios invisíveis... Sem público.
Se os avós não tivessem ido descansar, possivelmente eu nunca me teria perdido. Mas foi (muito) por eles que me tentei encontrar. E continuo a tentar, com força e vontade. O que mais quero é ser o melhor possível em tudo o que sou... Porque do nada tudo muda e o amanhã só a Deus pertence...